Cartazes contra a participação de Israel nas XXXIII Olimpíadas Benoit Tessier - Reuters

Diplomacia para a paz e a tolerância longe do pódio em Paris 2024

Protestos contra a participação de Israel. Palestinianos a acusar israelitas de violar a trégua olímpica. Alta segurança por todo o lado. Atletas russos e bielorrussos banidos exceto se competirem sob bandeira neutral. Comité Olímpico Internacional (COI) contestado por alegadamente usar dois pesos e duas medidas. Fará ainda sentido falar do desporto enquanto promotor "da paz, da tolerância e da cooperação" entre os povos?

Para além dos discursos e da alegada característica apolítica das organizações desportivas internacionais, do COI à FIFA, a realidade geopolítica impõe-se e os Jogos Olímpicos, o maior evento desportivo do planeta, estão longe de serem um espaço neutro ou sequer naturalmente pacífico.

Paris 2024 desenrola-se precisamente num clima de tensões internacionais exarcebadas. Basta analisar o conflito israelo-palestiniano, que mais uma vez marca as Olimpíadas. Ou as condições impostas aos atletas russos e bielorrussos para poderem competir, unicamente a título individual e sob uma bandeira neutral, sem direito a hinos ou a cores dos seus países. Demarcando-se das polémicas, a organização afirma ser sua responsabilidade "receber atletas que se tenham qualificado, nas melhores condições possíveis e seja qual for a sua nacionalidade".

"Respeito pelos Direitos Humanos", referiu em dezembro de 2023 o Comité Olímpico Internacional, ao explicar a concessão aos atletas russos e bielorrussos nas XXXIII Olimpíadas, apesar das sanções impostas aos seus países pela invasão da Ucrânia em 2022.

Decisão enquadrada na chamada 'diplomacia desportiva", descrita pela organização de Paris 2024 como uma "oportunidade real de promover os valores do desporto, como a paz, o respeito e a transcendência de si mesmo".

Instado a comentar o ambiente contestatário que se vive em torno destas Olimpíadas, o jornalista e comentador deportivo Rui Miguel Tovar prefere passar aos atletas, mais do que aos organizadores, a bola da promoção destes valores, considerando "demasiado abrangente" referi-los num contexto de "povos". 

"Faz sentido falar de atividade promotora entre os desportistas, eles é que vão dar o exemplo e tornar estes Jogos um marco histórico, seja com bandeiras brancas ou dos respetivos países", considera.

Muitos dos que protestam esquecem que os mais sacrificados são os atletas, lembra ainda o jornalista, para quem a inclusão na competição dos atletas russos e bielorrussos, sob condições, não pode ser vista como uma vitória nem do desporto, do COI ou sequer dos seus próprios países, que autorizam implicitamente a sua participação.

"É uma vitória para os desportistas, que se prepararam quatro anos para o maior evento de sempre", reflete. "Reconhece-se o mérito desses desportistas esforçados, que ainda assim conseguem ser insultados pelos próprios compatriotas, até os altos dirigentes federativos, por se terem inscrito nos Jogos", lembra ainda.
Tréguas para quê

As polémicas perseguem as Olímpíadas modernas. Nos últimos 130 anos, os interesses políticos e diplomáticos de cada país organizador, e da região onde se insere, afetaram sempre os Jogos. 

Do mesmo modo, os Estados participantes promoveram e sustentaram as suas próprias agendas, à boleia do prestígio alcançado nos eventos.

As XXXIII Olimpíadas refletem por exemplo o esforço de paridade entre homens e de mulheres, que foi alcançada pela primeira vez na época moderna da competição.

Na última década, a inclusão de atletas apátridas ou refugiados foi uma das principais conquistas do espírito olímpico.

Surgiram entretanto outros desafios, como o uso do véu islâmico, ou a participação de atletas transgénero, apesar do desporto ser oficialmente considerado uma atividade humana em que religião e diferenças culturais são colocadas de lado. Pode argumentar-se que é impossível alcançar concórdia generalizada num evento como os atuais Jogos Olímpicos e Paralímpicos, que juntam 204 nações, mais os comités olímpicos dos participantes refugiados e neutrais, num total de mais de 10.500 atletas de 32 desportos e 48 disciplinas.

Alguns dos esforços para promover a inclusão e o diálogo através do desporto parecem destinados ao fracasso.

O melhor exemplo disso são as tréguas olímpicas que supostamente deveriam ser declaradas entre inimigos enquanto durassem as competições, como era imposto na Grécia Antiga. São uma das característica perenes dos Jogos.

A resolução adotada pelas Nações Unidas em 2023, a pedir a trégua para 2024, intitulada Construir um mundo pacífico e melhor através do desporto e do ideal olímpico, tenta manter este espírito.

António Guterres, secretário-geral da ONU sublinhou na altura o "simbolismo dos jogos de tolerância, paz e cooperação entre povos, culturas e nações".

Ninguém esperava contudo, realmente, que os dois grandes conflitos recentemente declarados - na Ucrânia e na Faixa de Gaza - fossem suspensos durante os Jogos e nas semanas imediatamente antecedente e posterior a estes, um período entre 19 de julho e 15 de setembro de 2024. E não foram.

Resta perguntar para que serve então declarar tais tréguas, ou se estas exprimem somente um ideal inatingível. Boas intenções não bastam. Deveria a violação das tréguas ser sancionada? 

Com ironia, Rui Miguel Tovar remete a dúvida para Pierre Coubertin, fundador dos Jogos modernos. "Só ele saberia responder", afirma.
Espírito olímpico, onde andas

Atualmente, a participação ou não de um país nos Jogos serve de juízo ou castigo face a ações e opções políticas e militares. O nível de segurança vivido nestas semanas em toda a capital francesa e em torno das competições reflete as profundas divisões deste raciocínio.

Longe do espírito da alegada concórdia desportista, o Comité Olímpico da Palestina apelou segunda-feira, 23 de julho, ao presidente do COI, Thomas Bach, para que fosse proibida a participação israelita no evento. Justificou o pedido com os bombardeamentos de Gaza, encarados como violação da trégua olímpica.

A participação israelita está aliás a ser alvo de contestação pela própria esquerda e extrema-esquerda de França, que apelaram a protestos políticos e para quem Israel "não é bem-vindo em Paris". Em contraste, o presidente francês, Emmanuel Macron, sublinha que, apesar das "divergências profundas", receberia o primeiro-ministro isrealita, Benjamin Netanyahu, "como qualquer outro" chefe de Governo, defendendo o diálogo.

As ruas de Paris enchem-se de defensores da causa palestiniana, para quem a agressão israelita na Faixa de Gaza ultrapassou toda a legitimidade, por mais que fosse inicialmente justificada pela invasão de sete de outubro de 2023, por parte do Hamas, e pela existência de reféns.

Como comprovou o jornalista da RTP Eduardo Pestana, na semana de abertura dos Jogos em Paris, os detratores de Israel apontam o dedo ao COI, considerando que usou dois pesos e duas medidas, por ter castigado a Rússia e a Bielorrússia pela agressão à Ucrânia e não Israel pela destruição imposta a Gaza.

Rui Miguel Tovar concorda. "Israel também devia ser sancionado da mesma forma, até porque é um conflito que dura há meses", defende, compreendendo a polémica. "Israel devia participar nos Jogos, sim, mas nas mesmas condições de Rússia e Bielorrússia, sem direito a bandeira", afirma.

"O problema é sempre o mesmo, nunca houve igualdade nem nunca haverá, o poder estabelecido encarrega-se sempre de ver as leis e as tréguas à sua maneira", reconhece.

Questionado em conferência de imprensa, Thomas Bach responde que os dois casos não são comparáveis. 
 
A diplomacia francesa garante que a delegação israelita é "bem-vinda". À cautela, Gérald Darmanin, ministro do Interior, anunciou entretanto a três dias do início dos Jogos, que os 88 atletas israelitas serão protegidos 24 horas por dia, numa rejeição de atentados que lembrem o sucedido em Munique, há 52 anos.
Excluir Israel

Ao contrário dos israelitas, a participação dos atlteas palestinianos em Olímpiadas inscreve-se numa quota universal, disponibilizada pelo Comité Olímpico Internacional de forma a incluir desportistas de todas as proveniências, mesmo os mais pobres, cuja participação não pode ser assegurada pelo país, ou os que atravessam especiais dificuldades. Foram cinco os desportistas palestinianos há quatro anos em Tóquio, são seis já confirmados em 2024, cinco homens e uma mulher, a competir nas modalidades de natação, judo, pugilismo, tiro e taekwondo.

Este ano, os palestinianos consideram a sua presença só por si uma vitória, alcançada à revelia do conflito entre Israel e o Hamas. 

Aproveitam entretanto para pedir a exclusão de Israel dos Jogos, sublinhando as consequências do conflito, o qual, referem, vitimou 400 atletas, árbitros, treinadores e outras pessoas ligadas ao desporto, incluindo o corredor de longa distância Majed Abu Maraheel, o primeiro palestiniano a competir em Jogos Olímpicos, em Atlanta 1996.

Na carta enviada ao líder do COI, o comité palestiniano "enfatiza que os atletas palestinianos, particularmente aqueles em Gaza, não têm passagem segura e têm sofrido significativamente devido ao conflito em curso". 

"A destruição de instalações desportivas agrava a situação dos atletas que já estão sob severas restrições", refere ainda a missiva, lembrando que um tribunal superior das Nações Unidas considerou ilegal a ocupação de territórios palestinianos por Israel.

O Comité Olímpico israelita reconhece as dificuldades que esperam a delegação em Paris, mas destaca a resiliência dos quase 90 atletas que se classificaram para as XXXIII Olimpíadas.

"Não é segredo que estes Jogos são um pouco mais difíceis para nós todos. Mas temos total confiança na organização da segurança", refere a presidente do Comité Olímpico de Israel, Yael Arad. O judoca israelita Inbar Lanir prefere encarnar o espírito olímpico. "O meu contributo é ligar todos por meio do desporto. Está acima de tudo, política, guerras e ódio. Então, sinto-me seguro e animado por representar meu país", frisa.

Resta saber como irá reagir o público à presença dos israelitas nas provas e talvez nos pódios.

Para já, "só podemos esperar manifestações", considera Rui Miguel Tovar. "Pensar mais além é perigoso".

"Claro que o público se vai manifestar ruidosamente, nos estádios, nos eventos e também nas ruas, até porque os franceses são conhecidos por saírem à rua e clamar por igualdade, justiça e fraternidade. Nunca foi um povo com paninhos quentes", lembra. Contudo, sublinha que "também por isso a polícia francesa está altamente qualificada para suster qualquer avanço fora da lei". 

"Toda a gente tem direito a manifestar-se, desde que se chame a atenção com cabeça para situações trágicas e de calamidade", acrescenta.
Rússia, a pária dos Olímpicos

Antes da polémica israelo-palestiniana recente, a grande questão a ensombrar estes jogos era a presença de atletas russos e bielorrussos, banidos das competições internacionais devido à invasão da Ucrânia em fevereiro de 2022. O COI recuou depois, alegando que a esmagadora maioria dos desportistas não quer "castigar outros atletas pelas ações do seu Governo".

Em março de 2023, o Comité Olímpico Internacional abriu assim aos atletas dos dois países a porta antes encerrada, autorizando-os a participar em provas de qualificação, desde que cumprissem determinadas regras, incluindo fazê-lo a título individual sob o signo da neutralidade.

Uma decisão tomada a pedido de diversas federações de desportos olímpicos mas muito contestada. A Ucrânia, enquanto país agredido, ameaçou mesmo boicotar os Jogos e diversos atletas ucranianos sentiram-se pessoalmente injuriados.
Em julho de 2023, a Ucrânia aceitou oficialmente a participação destes atletas, desde que sob bandeira neutral.

O COI anunciou depois no final do ano a sua decisão quanto aos Jogos de Paris 2024, de incluir aqueles atletas.

Uma entre seis exigências para a participação foi que nenhum dos atletas individuais neutrais, com passaporte russo ou bielorrusso, conhecidos como AINs, apoiasse a guerra contra a Ucrânia. Condição alargada ao pessoal de apoio.

Casos de doping e equipas ficaram igualmente impedidos de participar.

O COI manteve por outro lado as sanções contra os dois Estados, incluindo a ausência de traços identificativos de ambos os países, em quaisquer locais ou funções ligadas aos Jogos de Paris 2024, incluindo bandeiras, hinos, cores ou quaisquer outras referências à Rússia e à Bielorrússia.

Também nenhum representante governamental ou estatal foi convidado ou creditado.

O presidente da Federação Internacional de Atletismo, Sebastian Coe, anunciou contudo que a organização decidiu impôr a exclusão de todos os atletas dos dois países "de todos os eventos" promovidos pela Federação.

"Poderão realmente ver alguns atletas neutrais da Rússia e da Bielorrússia em Paris. Só não será no atletismo", garantiu o britânico. "A nossa posição não mudou", referiu, aceitando contudo que outras federações optassem de forma diversa "se sentissem que isso era no melhor interesse da sua modalidade".

Muitos ucranianos mantêm as críticas, lembrando que a guerra provocada pela Rússia ceifou muitos dos atletas do país no campo de batalha, enquanto outros ficaram impedidos de treinar em condições normais.

Há duas semanas foi anunciado que 16 russos e 17 bielorrussos tinham aceitado participar
nos Jogos acedendo às condições impostas pelo COI. Um número muito menor do que o esperado. O COI referiu que 19 russos e sete bielorrussos convidados recusaram ou mudaram de ideias, admitindo que o contingente pudesse ainda diminuir até ao início dos Jogos, dia 26 de julho.

Em Tóquio 2020, a Rússia classificou 330 atletas e a Bielorrússia 104. Ao ver-se banida da maioria das provas desportivas mundiais, a Rússia anunciou entretanto a realização de uma competição alternativa, os "Jogos da Amizade", iniciativa que já foi criticada pelo Comité Olímpico Internacional, como de propaganda política e de abuso dos atletas.